O seu coração estava dividido entre dois amores. De um lado, um velho amor que se desfazia e do qual, se despedia. Tinha estado ligado àquela mulher por anos de afeto manso e tranqüilo, de amizade real e sincera. Coisa alguma poderia negar este fato. Durante este tempo, ele se sentira como alguém que caminha por uma planície colorida, sem montanhas e abismos, o ar claro e sem brumas, sabendo exatamente o que o esperava. Seu amor havia alcançado aquela condição de certeza sem surpresas, livre dos sofrimentos do ciúme e das dúvidas que são o inferno dos apaixonados. E era isto que ele deixava para trás. E por isto sofria. Encontrara uma outra mulher cuja imagem, por razões que ele não podia compreender, despertara das cavernas da sua memória uma outra cena cheia de mistérios, de perfumes exóticos, de penumbras eróticas, onde crescia o fruto dourado da vida. E ali, nesta nova cena que se refletia nos olhos daquela mulher, e se via como um homem diferente, de corpo jovem dotado de asas, pronto a voar pelo desconhecido, em nada semelhante ao ser doméstico ruminante que morava na cena do seu primeiro amor.
Apaixonara-se por ela. Apaixonara-se pela bela cena que via como aura mágica, em torno daquele rosto. Apaixonara-se pela sua própria imagem, refletida naquele olhar. Queria tê-la para poder ter-se deste modo intenso que nunca antes experimentara.Era preciso dizer adeus. Deixar para trás a antiga companheira fiel, e a cena pálida, descolorida e monótona que aparecia em sua aura cansada. Assim são os velhos amores: fiéis e cansados… Mas a idéia de magoá-la o horrorizava. Chegar para ela e simplesmente dizer: “Estou apaixonado por outra mulher. Vou-me embora…” — isto seria uma grosseria que ele nunca se perdoaria. Queria poupar-lhe a dor de ver-se deixada só, na plataforma da estação, enquanto ele partia.A dor de quem fica é sempre maior.
Sim, o que fazer? Como partir sem fazer sofrer demais uma pessoa boa, por quem se tinha um afeto sincero? Por vezes uma mentira é o melhor caminho. Há verdades cruéis e mentiras bondosas. Na encruzilhada ética entre a verdade e a bondade, que a bondade triunfe.Imaginou então uma mentira. Iria dizer que estava em dúvidas sobre se ela realmente o amava. Que por vezes ele a observava com o olhar perdido, e que imaginava seus pensamentos distantes, andando por outros amores. Que, inclusive, durante o sono, ela dissera repetidas vezes o nome de um homem (Pobrezinha! Não teria formas de contestá-lo. Pois estava dormindo…) Assim, ele queria que os dois se dessem um tempo. Que ficassem longe, provisoriamente, a fim de que os sentimentos pudessem ficar mais claros. A distância é um excelente remédio para as confusões do amor. E assim ele fez.Ela ouviu suas alegações tranqüilamente, sem sobressaltos aparentes. Terminada a sua fala, quando ele se preparava para ouvir as contra- argumentações que deveriam se seguir, o que ele ouviu foi outra coisa: — Sabe? Cada vez mais me surpreende a sua sensibilidade. Como foi que você percebeu? Fiz tudo para esconder meus sentimentos de você! Eu não queria magoá-lo! Mas agora que você já sabe, é bom assumir a nossa verdade. De fato, há um outro. Chegou a hora de dizer adeus…
O que aconteceu naquele instante ele nunca pôde compreender. Pois aquelas palavras eram tudo de que precisava. Estava livre para se entregar sem culpas a sua nova paixão. Mas a única coisa que ele sentiu foi a dor imensa de uma paixão que repentinamente explodia por aquela mulher que lhe dizia adeus… E ele se viu solitário e triste, na plataforma vazia da estação, enquanto ela partia… Só lhe restava voltar para a casa vazia, onde ninguém o esperava… Como eu já disse: não é a pessoa que amamos; é a cena”.
(Retorno e Terno)
Rubem Alves
Rubem Alves
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